ComentárioFilmeO segredo dos seus olhos e pontos da psicanálise

Por Juliana Figueiró Ramiro

O olhar da psicanálise é um caminho sem volta. Impregnado dele, é impossível não ver o mundo por detrás desses óculos. A filósofa e psicanalista Julia Kristeva tem uma frase que gosto muito: falar é falar-se. Assim, entendendo a fala como um dizer, não necessariamente suportado apenas pela oralidade, escrevo este breve texto com lentes duplas – a da psicanálise e a minha. E já não há uma ou a outra, mas sim ambas.

Neste pequeníssimo ensaio quero propor algumas aproximações entre conceitos da psicanálise e o filme O Segredo dos Seus Olhos, de 2010, com direção de Juan José Campanella. Na trama, Benjamin é um oficial de justiça aposentado, que decide escrever um livro sobre um caso real – o estupro e assassinato da jovem Liliana. Ele foi encarregado do caso, conheceu o marido da vítima e teve significativo envolvimento na trama. Posso supor que o filme O Segredo dos Seus Olhos desacomoda a todos os neuróticos que o assistem. A castração por si só já nos toca com certo tom injusto, mas seguimos. Porém, quando ela nos chega com a injustiça onde deveria ter justiça, os sentimentos são muitos. Essa é uma das aproximações possíveis entre o filme e a psicanálise. Nós nos submetemos a lei esperando que ela seja o caminho correto. Mas nem sempre isso se realiza, pois, viver em sociedade não é viver sob o guarda-chuva do justo, mas viver num sistema marcado pelas relações de poder.

Outro ponto que me chama atenção no filme é quando Ricardo, obcecado com a morte da esposa Liliana, em luto, sofre por estar perdendo as lembranças, o que restou da mulher. Ele diz: – Não sei se são lembranças ou lembranças de uma lembrança. É possível fazer certo paralelo com o conceito de lembranças encobridoras, texto de 1899, de Freud. Na teoria, temos recordações, geralmente infantis, que possuem nitidez, mas parecem desprovida de grande sentido. Segundo Freud, elas servem para ocultar outra lembrança significativa, que foi recalcada. No filme, a frase pode ser observada como parte do trabalho do luto, de deixar que a sombra do objeto, bem como suas representações formem um todo com o eu. O segundo momento do luto seria desfazer esse movimento, voltando a reinvestir em outros objetos. Porém, essa retomada fica substancialmente prejudicada, já que o criminoso segue solto. Assim, o marido de Liliana assume para si a luta/luto de fazer justiça à mulher.

Pablo Sandoval, o alcoolista apaixonado, amigo e colega de trabalho de Benjamin, também traz algo interessante – a compulsão a repetição e as pulsões de vida/morte que envolvem as paixões. Não podemos esquecer a origem da palavra paixão – Pathos, uma palavra grega que significa sofrimento. Numa conversa com Benjamin, que questiona por que ele está no bar ao invés de estar trabalhando, Sandoval afirma: – Porque eu amo beber e a gente, mesmo que lute contra, acaba voltando a nossa paixão. Neste movimento de repetição, que Sandoval aponta em si mesmo e no colega Benjamin, é que ele descobre a pista para encontrar Izidoro Gomes, o apaixonado por futebol, assassino de Liliana. O exercício de Sandoval a mim parece muito próximo do trabalho de um analista, que encontra em si e no seu inconsciente e desejo, o seu analisando, desejo e inconsciente.

Izidoro Gomes, um perverso fixado na mulher que ataca seu narcisismo desde a infância/adolescência, quando não olha para ele como amante, confessa seu crime traído pelo mesmo mecanismo. Irene, ao interroga-lo, o ataca verbalmente, dizendo que ele seria incapaz, pelo porte físico, de ter sido o assassino/amante de Liliana. Gomes responde às provocações, e confessa o crime como forma de se sentir superior, acima da lei e do julgamento dos homens, negando sua condição de castrado. Izidoro também destrói o objeto – Liliana – como que para preservar a si e sua onipotência. O perverso, para a psicanálise, é a terceira estrutura, ao lado dos neuróticos e psicóticos. De forma bastante reduzida o objetiva, na perversão o sujeito reconhece a lei, porém não se submete a ela, buscando sempre a transgredir. A perversão é um fenômeno sexual, mas também social, físico, político e estrutural. Em termos lacanianos, o perverso reconhece a Lei do Pai porém não quer ter com ela.

Por fim, uma moral da história possível de ser extraída do filme é a de que erros causam erros. Um assassinato, um acusado em liberdade e um bancário que vira um criminoso, mantendo outra pessoa em cárcere privado, para fazer justiça. Penso que assim opera o nosso psiquismo. Sua constituição e funcionamento estão atrelados a uma historicidade, a um olhar que tivemos ou não, um toque, um dito, um não dito, um campo real, imaginário e simbólico que foi construído por nós, atravessados por esse Outro, esses outros que nos constituem. O cristal quebra como quebra porque é levado a quebrar de tal forma. É uma relação.