ArtigosTeoriasA escrita e a psicanálise

Por Juliana Figueiró Ramiro

Para Higounet (2004, p. 9), no livro História concisa da escrita, a escrita é “um procedimento do qual atualmente nos servimos para imobilizar, para fixar a linguagem articulada, por essência fugidia”. O autor busca na pré-história o surgimento da escrita, apontando para sua função de permanência, a necessidade do sujeito de deixar registros, inscrições menos efêmeras que a fala.

Ainda para o autor (2004), a escrita, mesmo silenciando a fala, além de guardar, realiza o pensamento, que até ser posto no papel, existia como uma possibilidade. A escrita é uma forma de organização do pensamento.

Desde as pinturas rupestres, o homem da pré-história já expressava seu desejo de preservar registros de suas atividades, deixando, assim, marcas para serem lidas por um outro, na posterioridade. Quando, na pré-história, o homem passou de nômade para sedentário, introduzindo na sua rotina o cultivo de seu alimento e a criação de animais, houve a necessidade de um recurso para registrar o que possuía e o quanto de alimento havia estocado. Aqui vale destacar a ideia de necessidade da escrita. Quem escreve, escreve porque precisa.

Retomando a relação da escrita com o pensamento, é válido destacar que essa ligação não pode ser vista apenas como a fixação do pensamento em palavra, pois a escrita também dá acesso ao mundo das ideias, permitindo que o sujeito assimile o pensamento. Para Olson (1997), a escrita contribui para o nosso entendimento do mundo e também de nós mesmos. Nesse fato reside o interesse desta tese.

Quem escreve, de certa forma, é considerado autor daquilo que produziu. Assim, para alguns pensadores do campo da Psicanálise, como Nazar (2009, p.13), a autoria é “um percurso sublimatório que, na linguagem, em letra suportada, dá ao sintoma a forma de ESCRITA”. Nazar (2009) sustenta a proposição de que existe uma relação entre linguagem e inconsciente. Ela situa tal fato na descoberta freudiana de que o artista escreve também com seu inconsciente e vai além, colocando a escrita como a arte de bem fazer com seu sintoma, apontando para o mecanismo de sublimação existente neste exercício.

A autora (2009), na obra O sujeito e seu texto, fala da existência da fantasia na escrita, sendo a fantasia a organizadora da cena do inconsciente, também está presente na escrita e nela produz efeitos, pois a arte (de escrever) “permite o acesso ao que não pode ser visto, o que não se sabe nomear, daí o interesse para psicanalistas e filósofos” (NAZAR, 2009, p.18)

Barthes (2004), no livro intitulado O grau zero da escrita, coloca-nos diante do processo de escrita como o entendemos nesta tese, também a serviço do inconsciente do sujeito.

(…) a forma literária pode doravante provocar os sentimentos existenciais que estão atados ao interior vazio de todo objeto: sentido do insólito, familiaridade, repugnância, complacência, uso, homicídio. Há cem anos que toda escrita é assim um exercício de domesticação ou de repulsa em face dessa Forma-Objeto que o escritor fatalmente encontra em seu caminho, que ele tem de olhar, enfrentar, assumir e que jamais pode destruir sem destruir-se a si mesmo como escritor. (BARTHES, 2004, p.5)

Quando o autor fala sobre o exercício de domesticação ou repulsa que acompanha a escrita e do fato daquilo que se coloca diante do escritor não poder ser destruído sem que destrua a si mesmo, podemos fazer um paralelo na Psicanálise da relação do sujeito com seu inconsciente. O eu não é senhor soberano em sua própria casa, pois divide espaço com aquilo que em parte desconhece, mas que é porção de si. Diante disso, é inegável que a escrita seja um processo doloroso e, ao mesmo tempo, retomando o que já foi dito até aqui, necessário.

Barthes (2004, p.10) coloca o uso da escrita como um reflexo sem escolha, uma propriedade dos homens, “um objeto social por definição, não por eleição”. Com isso, aponta mais uma vez para essa parte “sem controle” do gesto.

Outro ponto de reflexão do autor e que aqui nos interessa é com relação ao estilo. Para ele (2004, p. 10): “O estilo está quase além: imagens, um fluir, um léxico, nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam, pouco a pouco, os automatismos mesmos de sua arte”. Para Barthes (2004, p. 10/11), o estilo é aquilo que se repete e que não está sob o domínio do autor. Ele coloca o estilo como “o produto de um surto, não de uma intenção”, ressaltando, mais uma vez, sua relação com o inconsciente. Barthes (2004) aponta o estilo como algo que não pode ser escolhido, ele é a “coisa” de quem escreve, seu esplendor e, ao mesmo tempo, sua prisão. Isso fica evidente no seguinte trecho, que também nos leva à ideia de necessidade da escrita:

É a voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta; funciona à maneira de uma Necessidade, como se, nessa espécie de surto floral, o estilo não fosse senão o termo de uma metamorfose cega e obstinada, provinda de uma infra-linguagem que se elabora no limite da carne e do mundo. (BARTHES, 2004, p. 11)

Barthes (2004) foi um filósofo da linguagem, mas, olhando para seus escritos a partir do óculos da Psicanálise, é possível fazer significativas aproximações. Ele chama o estilo, essa espécie de assinatura do autor como um segredo, um segredo que o próprio escritor desconhece. Barthes (2004), com isso, aponta-nos para a instância, o lugar de onde vem o estilo – o inconsciente.

Podemos pensar uma relação/aproximação da escrita com a psicanálise justamente pelas características da escrita, por ter algo em si que se repete, porque, mesmo não sendo de conhecimento do sujeito está lá com ele, e vaza, transborda, registra-se e se insere no texto.

REFERÊNCIAS

BARTHES, R. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
HIGOUNET, C. História concisa da escrita. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
NAZAR, T. P. O sujeito e seu texto. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2009.
OLSON, D. R. O Mundo no Papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997.