ArtigosTeoriasBreves notas sobre o “outro”, “alteridade” e “outridade”: de Lacan ao pós-colonialismo

por Renata Santos de Morales

Nos estudos freudianos e pós-freudianos, principalmente nas propostas de Jacques Lacan, com a análise da formação da subjetividade, o termo “outro” ganha relevo e atenção. A partir daí é utilizado na fundamentação dos estudos pós-coloniais, e é a base da estrutura, por exemplo, da teoria do outramento de Spivak e de toda a concepção de alteridade dentro do pós-colonialismo.

Lacan argumenta que, na psicanálise, os processos devem sempre ser vistos de forma circular entre sujeito e outro, “do sujeito chamado ao Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do Outro que lá retorna” (LACAN, 1979, p. 196). Lacan conceitua:

O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se no sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer.

[…] o sujeito depende do significante e o significante está primeiro no campo do Outro. (LACAN, 1979, p. 196)

A noção de dependência do significante, e, por conseguinte, do outro está relacionada à característica de ambiguidade do signo, o qual representa algo para alguém. Esse alguém, sugere Lacan (1979, p. 197) “pode ser muitas coisas, pode ser o universo inteiro”, de forma que os signos estão à disposição do sujeito e o que eles representam pode ser tomado por qualquer um.

Lacan pensou sua teoria a partir da proposta de Saussure. No entanto, Lacan (1979) faz ajustes ao que este propôs, argumentando que a linguagem seria constituída essencialmente de significantes e não de signos e que o significado não teria relação imutável com o significante. Assim, a noção de signo deveria ser relativizada, já que uma relação mais ou menos fixa entre significante e significado estaria restrita a um dado contexto. Na linguagem como um todo, isto é, no lugar do outro, só existem significantes.

Para Lacan (1979), é no lugar do outro que se desenrola a cadeia de significantes que determina o sujeito. É lá que se encontram os significantes que representam os sujeitos para outros significantes. O outro se apresenta, para o ser do sujeito, como o sentido de sua existência. Se pudéssemos optar apenas pela porção de ser que nos cabe, cairíamos em um não-senso. Se nos alicerçamos no sentido, que é o outro, ele apenas subsiste “decepado”, como diz Lacan (1979, p. 197), da porção de não-senso que carregamos. É justamente nessa hiância que aparece a realização do sujeito. O não-senso é o inconsciente. A esse mecanismo Lacan dá o nome de alienação (1979). Talvez o exemplo mais elucidativo sobre o tema tenha sido apresentado pelo próprio Lacan (1979), a partir de uma simples frase que considera a liberdade (representando o ser) ou a vida (representando o outro): se escolhemos a liberdade, não temos o sentido da vida – portanto, não é possível a vida, tampouco, por consequência, a liberdade: perdemos as duas instâncias. Se, por outro lado, escolhemos a vida, a porção da liberdade me escapa, temos a vida amputada da liberdade.

É neste contexto que se estabelecem os estudos sobre o colonialismo e pós. Ashcroft (2007) postula que o colonialismo conseguiu, por muito tempo, desenvolver uma ideologia enraizada em uma justificativa ofuscante e seus processos violentos e essencialmente injustos tornaram-se cada vez mais difíceis de perceber forjados de tarefa civilizadora, de desenvolvimento paternalista e protetor. A utilização de designações territoriais, segundo o autor, como protetorados ou territórios fiduciários, serviu para justificar o processo contínuo do colonialismo, bem como para esconder o fato de que esses territórios eram campos de batalha de lutas cada vez mais violentas, que tinham como objetivo a disputa por mercados e matéria-prima entre nações industrializadas do ocidente.

A era iluminista estabeleceu um certo padrão de modernidade, de civilização, em que se começou a pensar em uma classificação ou categorização da sociedade. Nesse período, uma estrutura de pensamento totalizante então se consolida e categoriza os povos como civilizado/não-civilizado, evoluído/bárbaro, ocidental/oriental, de centro/de margem e, por consequência, inferior/superior e colonizador/colonizado. Essa construção advém da experiência do europeu de auto-comparação com outros povos e serviu como elemento balizador das relações humanas que daí decorreram (ASHCROFT, 2007).

O colonialismo, aponta Aschcroft (2007), por meio da literatura contextualizada no período de expansão colonial europeia, revela as formas pelas quais é representada a degradação de outros seres humanos como natural, como se fosse inata ao seu estado degenerado e bárbaro. É a partir disso que o pós-colonialismo se utiliza do conceito de “outro” e refere ao colonizado como o outro colonial ou, simplesmente, o outro

O pós-colonialismo apresenta um desafio às formas coloniais de saber e é uma resposta ao discurso do colonizador. O pós-colonialismo não é uma proposição tão ingênua a ponto de querer se colocar como uma era histórica radicalmente nova, nem anunciar um mundo novo e corajoso, no qual todos os males do passado colonial tenham curado. Assim, reconhece que as realidades materiais e os modos de representação comuns ao colonialismo ainda estão muito presentes nos dias atuais e marcam a cultura dos povos colonizados, mesmo que o mapa político do mundo tenha mudado com a descolonização (MCLEOD, 2004, p. 32).

Teóricos como Spivak e Homi K. Bhabha, seguindo uma orientação filosófica pós-estruturalista, tendem a concentrar suas análises no papel da linguagem e da escrita especificamente na disseminação e resistência a ideologias coloniais. Tais estudos, como o apresentado em O Local da Cultura, por Bhabha (1998), ou Can the Subaltern Speak, por Spivak (2010), buscam, a partir do conceito de “outro”, aplicar a consciência aumentada das ambiguidades do pensamento e da escrita ocidentais para interrogar as contradições e inconsistências inerentes aos discursos coloniais.

Segundo Ashcroft (2007), a filosofia clássica dá preferência ao termo alteridade [alterity] em detrimento do termo outridade [otherness], para marcar uma mudança de perspectiva sobre a relação entre a consciência (plano interno) e o mundo (plano externo). Segundo o autor (2007), de forma mais latente desde Descartes coroa-se a consciência do homem como ponto de partida privilegiado para a constituição do conhecimento. A partir disso, o outro sempre aparece como figura epistemologicamente inferior. Dessa forma, em uma construção de pensamento que se dá a partir da máxima cartesiana “penso, logo, existo”, toda e qualquer preocupação com o outro fica limitada a uma ordem epistemológica do outro – quem é o outro e o quanto sobre ele podemos saber. Essa instância era reforçada pelo conceito de outridade [otherness], termo que remete ao “estudo” do outro.

Em uma mudança de perspectiva no pensamento filosófico, passa-se a utilizar, com mais ênfase, o termo otherness [outridade], referindo-se, então, a um outro que agora não é mais epistemológico apenas, mas concreto, situado em um contexto sociohistórico, dotado de características políticas, culturais, linguísticas e religiosas.

Em estudos pós-coloniais as palavras alteridade e outridade [alterity e otherness] são, muitas vezes, utilizadas de forma indistinta (ASHCROFT,  2007, p. 9), ignorando-se a diferenciação entre os dois termos – outridade como um problema filosófico e alteridade como fenômeno localizado e discursivo. No entanto, a distinção é importante e deve ser pensada quando adentramos nas dimensões do colonialismo, de forma que não devemos tomar os dois termos como sinônimos. Por um lado, não é possível dissociar a identidade do colonizador – ou de toda a cultura de um império – da alteridade do sujeito colonizado. Por outro lado, não é viável pensar nessa relação sem considerar o ponto de vista da outridade, porque são sujeitos de conhecimento que estão envolvidos no processo.

Pensar nas categorias alteridade e outridade implica necessariamente pensar o outro. De forma genérica, o outro é todo aquele diferente, que não é o eu.   O reconhecimento da existência do outro é fundamental para que possamos buscar identificarmo-nos e reconhecermo-nos como pertencentes a uma determinada cultura, como partes de uma historicidade, como ocupantes de um lugar dentro do todo da existência humana.

No contexto dos estudos pós-coloniais, o sujeito colonizado é definido como outro  a partir de um discurso que faz uso das estruturas de poder pertencentes à forma de pensar do ser humano. A esse discurso, pela via das relações de poder, a cultura do colonizador sobrepõe-se a do colonizado. Essa relação se desenrola por uma perspectiva que tem origem no campo da filosofia e da psicanálise.

Colocando essa questão em perspectiva, o discurso do colonizador ou o próprio colonizador, pode ser visto como um grande outro para o sujeito colonizado, o qual se constituirá como outro, em uma relação infindamente binária Outro/outro  (ASHCROFT, 2007, p. 155). Tal comparação pode ser vista por dois ângulos: no primeiro, o discurso é o que determina os termos pelos quais o sujeito colonizado dá sentido a si; no segundo, o colonizador é apresentado como o referencial absoluto do sujeito colonizado, ou seja, como modelo ideológico apresentado a esse sujeito a partir do qual ele irá perceber a si e perceber seu lugar no mundo. Assim, percebemos o discurso do colonizador como balizador da formação da subjetividade do sujeito colonizado, o qual está sempre submetido ao Outro representado pelo colonizador.

A propósito da distinção Outro/outro, ao longo de seus escritos, Lacan distingue o conceito de Outro (com “o” maiúsculo) do conceito de outro (com “o” minúsculo) e utiliza as duas grafias para diferenciar as abordagens. A distinção proposta por Lacan se configura como de suma importância para os estudos pós-coloniais. Segundo Roudinesco, a distinção entre outro e Outro é utilizado por Lacan:

[…] para designar um lugar simbólico — o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus — que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo.  

Pode ser simplesmente escrito com maiúscula, opondo-se então a um outro com letra minúscula, definido como outro imaginário ou lugar da alteridade especular. Mas pode também receber a grafia grande Outro ou grande A, opondo-se então quer ao pequeno outro, quer ao pequeno a, definido como objeto (pequeno) a. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 558)  

Lacan optou por tratar da alteridade a partir desses dois conceitos para diferenciar “o que é da alçada do lugar terceiro que escapa à consciência (Outro), do que é do campo da pura dualidade, no sentido da psicologia (outro)” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 558).

Ashcroft (2007) apresenta, ainda, um possível desdobramento do conceito: o Outro colonizador pode representar uma figura materna ou paterna, simbolicamente aquele Outro que nutre e protege, mas que também castra, no sentido de que o significado e a dominação exercidas pela via do discurso colonial dão nítida sensação de que o poder está nas mãos do colonizador.

A distinção proposta por Lacan também aponta a operação de separação, a qual remete, segundo Lacan, à noção do latim de se parere, ao engendrar-se, ao se procurar (LACAN, 1979). Dessa forma “uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o Outro por seu discurso” (LACAN, 1979, p. 203).

Os conceitos de “outro”, “alteridade” e “outridade” estão entre si ligados e foram utilizados, em diferentes contextos, para designar instâncias diferentes de conhecimento. Este trabalho tem caráter introdutório e teve como objetivo traçar, em linhas gerais, os conceitos e como estes foram se desdobrando a partir da psicanálise lacaniana, permeando estudos coloniais e pós-coloniais. Não foi o intuito, neste espaço, de esgotar o tema, mas tão somente instigar o leitor a estudos e leituras posteriores.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H. Post-colonial Studies: the key concepts. London: Routledge, 2007.

BHABHA, H. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

LACAN, J. O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.

LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

MCLEOD, J. Postcolonial London: Rewriting the Metropolis, London: Routledge. London: Routledge, 2004.

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

SPIVAK, G. C. Can the Subaltern Speak?: Reflections on the History of an Idea. Columbia: Columbia University Press, 2010.